Como montar o próprio grupo de criação literária

[1] Start. Ontem começamos mais um grupo de criação. Em casa, com boas cervejas, auto-organizado. Estou feliz, preciso disso. Conversamos também sobre possibilidades de intervenções urbanas. Ideias. A ver o que pasa. Para o próximo encontro, a bola está comigo – tenho que propor um exercício (na realidade, fico um pouco em dúvida se é um exercício de aquecimento para o início do próximo encontro ou se um exercício para ser realizado durante o nosso hiato entre encontros…

 

[2] Como montar o próprio grupo de criação literária
(um tutorial infinitamente inacabado)

  • Organizando o grupo
    – Chame pessoas que gostam de escrever, de ler e de ouvir.
    – É muito necessário gostar de ouvir outras pessoas. Senão, não há motivo para participar.
    – Marque um dia e hora. Não desanimem, não atrasem mais que 1:32min para começar.
    – Comida e bebida sempre ajuda
  • Primeiro encontro
    – No primeiro encontro, é interessante que cada pessoa fale de seu próprio projeto literário. Mesmo que seja a maior viagem.
    – Estabeleçam a forma de contato entre participantes: lista de e-mail, cartas anônimas, sinais de fumaça.
    – Pode até ser combinada uma pequena meta feliz – “fazer um zine” ao final – ou daquelas bem ambiciosas, típicas de poetas – “virar imortal”. Geralmente não dão certo, mas o processo é bonito.
  • Dinâmicas possíveis
    – O grupo só vai pra frente se houver confiança entre todxs. Daí a necessidade da não-violência e da escuta. Superdifícil isso, eu sei, não tenho receita a não ser viver.
    – Ao longo dos encontros, seria legal que todxs trouxessem um texto com cópias impressas suficientes aos demais. Não exagerar a dose, 3 folhas de prosa é um bom limite. O texto pode ser enviado antes eletronicamente também. Aqui vcs podem combinar modelos diferentes.
    – Evitar explicações por parte dxs pobres autorxs sobre “como escrevi”, “pq escrevi” – simplesmente partam para a leitura. Sinta quem lê, diria Pessoa. Sei que essas explicações tentam mudar o impacto da recepção do texto e diminuir a ansiedade do julgamento alheio. Entretanto, na “vida real” dxs escritorxs, nenhuma voz-além-túmulo imitando Tolstói te aparece pra explicar “pq criei a Ana Karenina”. Assim, esta prática deve ser gentilmente afastada. Deixar para o papo de bar é o ideal, vale até chorar no ombro alheio, inclusive melhora as interações entre as pessoas.
    – As demais pessoas podem fazer comentários a respeito do texto lido. Gentileza e acolhimento são fundamentais no processo.
    – Se há algum atrito (absolutamente normal em se tratando de coisas tão cheia de meandros como um texto), conversar, entender, esclarecer.
    – Deve ser um encontro prazeroso. Sempre.

 

[3] Comentário. Durante a faculdade (a de Direito), tínhamos a Academia de Letras e organizávamos Rodas de Leitura. Cada um chegava e trazia o texto. Era uma espécie de massacre público do que cada um tinha escrito. A graça era detonar de tal forma com o texto dx coleguinha até que ele ficasse irreconhecível dos cortes e canetadas. Acho o pior método do planeta. Final dos 1990, início dos 2000. A parte positiva é que, para sobreviver a tal método, tivemos que nos transformar em grandes amigues ou ia rolar morte à faca. Houve muitas perdas. Inclusive literárias. Hoje sobreviventes ainda nos falamos. Alguns. Talvez por isso eu ame tanto o início de Detetives selvagens, mando abaixo para o deleite da nação.

Esta experiência me fez ter a certeza que um texto, seja lá o que for, precisa ser respeitado em grupos de criação literária. O que é bastante difícil na prática, pois quanto mais iniciante a pessoa que escreve, mais aquele texto é a própria pessoa. Se vc critica o texto, aparece o efeito colateral de criticar a própria existência da pessoa. Há períodos em que somos muito suscetíveis e uma crítica a um texto nosso pode machucar fundo. I know the feeling. Ando pensando que o ideal é antes emponderar a pessoa que quer escrever para depois se aprochegar e criticar. Muito delicado tudo isso. Tenho poucas respostas, desculpa. Serão assuntos que teremos que resolver nos passinhos trôpegos da nossa humanidade. Ou não.

O tal trechinho do Detetives selvagens, que se passa na Cidade do México, mas poderia ser em qq salinha por aqui:

 

(…) entrei na gloriosa Faculdade de Direito, mas ao fim de um mês me inscrevi na oficina de poesia de Julio César Álamo, na Faculdade de Filosofia e Letras, e dessa maneira conheci os real-visceralistas, ou visce-realistas, e até mesmo vice-realistas, como às vezes gostam de se chamar. Até então eu havia assistido quatro vezes à oficina e nunca havia acontecido nada, o que é um modo de falar, porque observando bem sempre aconteciam coisas: líamos poemas, e Álamo, conforme seu humor, elogiava ou pulverizava os textos; alguém lia, Álamo criticava, outro lia, Álamo criticava. Às vezes Álamo se chateava e pedia que nós (que naquele momento não líamos) também criticássemos, então criticávamos, e Álamo começava a ler jornal.

O método era perfeito para que ninguém ficasse amigo de ninguém ou para que as amizades se cimentassem na doença e no rancor.

Por outro lado, não posso dizer que Álamo fosse um bom crítico, embora sempre falasse da crítica. Hoje creio que falava por falar. Sabia o que era uma perífrase, não muito bem, mas sabia. Não sabia, porém, o que era uma pentapodia (como todo mundo sabe, na métrica clássica esse é um sistema de cinco pés), tampouco sabia o que era um nicárqueo (um verso parecido com o falêucio), nem o que era um tetrástico (uma estrofe de quatro versos). Como sei que ele não sabia? Porque cometi o erro, no primeiro dia da oficina, de lhe perguntar. Não sei em que estaria pensando. O único poeta mexicano que sabe de cor essas coisas é Octavio Paz (nosso grande inimigo), os demais nem têm idéia, pelo menos foi o que me disse Ulises Lima minutos depois de eu me integrar e ser amistosamente aceito nas fileiras do realismo visceral. Fazer essas perguntas a Álamo foi, como não demorei a perceber, uma prova de minha falta de tato. A princípio pensei que o sorriso que me dirigiu fosse de admiração. Logo me dei conta de que não passava de desprezo. Os poetas mexicanos (suponho que os poetas em geral) detestam que lhes recordem sua ignorância. Mas não me atemorizei e, depois de ele destroçar um par de poemas meus na segunda sessão de que participei, eu lhe perguntei se sabia o que era um rispetto. Álamo pensou que eu lhe exigia respeito a meus poemas e desatou a falar da crítica objetiva (para variar), que é um campo minado por onde deve transitar todo jovem poeta, etcétera e tal, mas não o deixei prosseguir e, após lhe esclarecer que nunca em minha curta vida eu havia pedido respeito a minhas pobres criações, tornei a formular a pergunta, desta vez tentando pronunciar com a maior clareza possível.

– Não me venha com merda, García Madero – Álamo disse.

– Um rispetto, querido mestre, é um tipo de poesia lírica, amorosa, para ser mais exato, semelhante ao strambotto, que tem seis ou oito hendecassílabos, os quatro primeiros em forma de sirvente e os seguintes construídos em parelhas. Por exemplo… – eu já me dispunha a lhe dar um ou dois exemplos, quando Álamo se levantou de um pulo e deu por encerrada a discussão. O que aconteceu em seguida está envolto em brumas (apesar de eu ter boa memória): lembro da risada de Álamo e das risadas dos quatro ou cinco colegas de oficina, possivelmente coroando uma piada às minhas custas.

Retirado d’Os Detetives selvagens, Roberto Bolaño, Cia das Letras, 2006, tradução de Eduardo Brandão.

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