Lembro . Como se fosse hoje minha primeira aula a respeito de concretismo. A professora, pouco empolgada com o tema, nos passou um exercício – compor um poema concreto. Fiz uma recriação tosca daquele exemplo batido de aliteração do Cruz e Sousa (e puxa, hoje acho tão bonito o Violões que choram…), eram palavras em “v” que formavam a própria letra “v”, lastimável lambança lamentável.
Muito tempo depois, tive aula com o Fred Barbosa no cursinho pro vestibular. Comecei a entender o concretismo ali, brilhou uma luzinha no célebro.
Lembro. Como se fosse hoje a primeira vez que vi o Décio pessoalmente. Com essa boininha e óculos da foto. Fiquei impressionada. Como falava, um jorro de conceitos, argumentos enérgicos, gestos, pausas sisudas. Pensei comigo: podia um poeta concreto ter tanta paixão nas veias? Eu era bastante ingênua.
Daí que cheguei no Lobisomem. Acho que é um poema de 1948 e foi publicado n’O Estado de São Paulo. Incrível ler um poema desses… no jornal! Tem uns respingos dessa pele, desses nervos de cão nos meus poemas por aí. No fundo, é uma forma de gostar, duma forma invertida, da obra do Décio. Eu sou bastante ingênua.
Outro dia mesmo, ouvi do Augusto que não tinham estudado muito o Décio, que há coisas na obra dele que mereciam uma análise mais atenta, mais apurada, a serem descobertas. Digo hoje que descobrirão. Se euzinha boba descobri o Lobisomem.
E o Décio se junta às estrelas que sobem ao firmamento – mesmo que não as enxerguemos mais pela miopia ou pela poluição – estão ali, altas, imóveis, silêncios maiores.
O LOBISOMEM
O amor é para mim um iroquês
De cor amarela e feroz catadura
Que vem sempre a galope, montado
Numa égua chamada Tristeza.
Ai, Tristeza tem cascos de ferro
E as esporas de estranho metal
Cor de vinho, de sangue e de morte,
Um metal parecido com ciúme.
(O iroquês sabe há muito o caminho e o lugar
Onde estou à mercê:
É uma estrada asfaltada, tão solitária quanto escura,
Passando por entre uns arvoredos colossais
Que abrem lá em cima suas enormes bocas de silêncio e solidão.)
Outro dia senti um ladrido
De concreto batendo nos cascos:
Era o meu Iroquês que chegava
No seu gesto de anti-Quixote.
Vinha grande, vestido de nada
Me empolgou corações e cabelos
Estreitou as artérias nas mãos
E arrancou minha pele sem sangue
E partiu encoberto com ela
Atirando-me os poros na cara.
E eu parti travestido de Dor,
Dor roubada da placa da rua
Ululando que o vento parasse
De açoitar minha pele de nervos.
Veio o frio com olhos de brasa
Jogou olhos em todo o meu corpo;
Encontrei uma moça na rua,
Implorei que me desse sua pele
E ela disse, chorando de mágoa,
Que era mãe, tinha seios repletos
E a filhinha não gosta de nervos;
Encontrei um mendigo na rua,
Moribundo de fome e de frio:
«Dá-me a pele, mendigo inocente,
Antes que Ela te venha buscar.»
Respondeu carregado por Ela:
«Me devolves no Juízo Final?»;
Encontrei um cachorro na rua:
«Ó cachorro, me cedes tua pele?»
E ele, ingénuo, deixando a cadela
Arrancou a epiderme com sangue
Toda quente de pelos malhados
E se foi para os campos de lua
Desvestido da própria nudez
Implorando a epiderme da lua.
Fui então fantasiado a travesti
Arrojado na escala do mundo
E não houve lugar para mim.
Não sou cão, não sou gente – sou Eu.
Iroquês, Iroquês, que fizeste?
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Outros links:
Ouça O Lobisomem na leitura do Carlos Augusto Lima (@memoriaeprojeto)
Carrossel de signos: a poesia inaugural de Décio Pignatari, Raquel Bernardes Campos, trabalho de Conclusão de Curso, UnB, 2011.
Estelas e estrelas – uma incursão na poesia de Décio Pignatari, texto de Donaldo Schüler
Décio Pignatari: um fazedor octogenário para muitos e muitos séculos, artigo de Omar Khouri com ‘depoimentos informais’ de Augusto e Décio.
Perca-se pelo verbivocovisual do Daniel Scandurra – consta uma entrevista do Décio ao Programa Provocações 2004.