Mulheres escrevem poesia e desaparecem

Deveria estar economizando os braços da tendinite e me dedicando ao meu incrível novo romance (ou simplesmente indo passear), mas achei que valia a pena separar algumas horas do domingo nublado para este post.

No final do ano passado, tive que apontar no facebook dois fatos. Famosas tretinhas de feice. Que são o que a gente pode fazer diante de coisas tão óbvias. Neste caso, como a intensa produção de poesia feita por mulheres no Brasil segue invisível.

Aliás, taí: quer desaparecer com alguém, é só dizer que é mulher e escreve poesia. Pessoa desaparece em dois tempos.

O primeiro fato foi a notícia da realização da antologia Poesia brasileira atual – alguns poetas nascidos após 1980 (org. Fabrício Marques e Tarso de Melo, Vallejo & Co.) a ser publicado em e-book, com tradução em espanhol. Reúne 9 autores. Somente 3 mulheres. Se você acha tranquila a proporção, nove a três são dois gols a mais que o placar derradeiro da final da Copa.cult

O segundo foi a publicação de um artigo na revista Cult, A poesia de todo dia – Um breve balanço da produção poética em 2015, assinado pelo Heitor Ferraz. Dos 15 livros citados, somente 2 produzidos por mulheres. 15 x 2. Oi? Vocês estão no mesmo ano que eu? No mesmo século?

A parte mais louca de tudo – detesto ter que apontar isso ao Heitor ou ao Tarso, que são pessoas que conheço faz tempo e respeito, pra não dizer que a poesia do Heitor sempre foi bem lida nesta casa – foi que comecei a receber um monte de inbox me apoiando!

Sim, as pessoas concordam plenamente com minha indignação. Me contam histórias. Me aplaudem. Me telefonaram. Mandaram apoio via telegram. Só que no privado. Para poupar a figura pública. Entendo. É uma bosta dar a cara a tapa. Sinto na pele, dormi mal depois.

O que me espanta é que qualquer análise lúcida e cuidadosa dos dias de hoje iria apontar o evidente protagonismo feminino na poesia! Não faltam bons lançamentos, livros e publicações. Nem irei me estender com nomes e sugestões de leitura. Haverá tempo e farei com amor as sugestões. Mas… como uma pesquisa não verifica isso, Dyva do Céu?

Como sou um pouco cabeçuda, depois de alguns muitos papos e ideias aqui e ali – sim, claro que haverá uma contra-reação, bonita, afetiva, amorosa e se você enxergou aqui um convite, pode me mandar inbox – levantei hoje e fui fuçar em algumas antologias da virada do século. Pra até mostrar que não se trata de fatos isolados. Há uma construção clara de apagamento por trás.

Só mencionarei números. É um argumento simples. Que as passadas de pano não conseguem afastar. Nem os panos quentes. Acho que nas épocas foram antologias importantes.

esses-poetasVou só dizer o placar:

Em Esses poetas – uma antologia dos anos 90 (org. Heloisa Buarque de Hollanda, Aeroplano, 2001), a coisa é grave. De 22 poetas selecionados, são trazidas 4 mulheres: Claudia Roquette-Pinto, Josely Vianna Baptista, Lu Menezes e Vivien Kogut. Os 18 restante – quase 5 pra cada mulher – são homens. Se isso te parece um absurdo, vamos prosseguir.

No Na virada do século – poesia de invenção no Brasil (org. Claudio Daniel e Frederico Barbosa, Landy, 2002), de 46 poetas, temos 5 mulheres: Angela Campos, Claudia Roquete-Pinto, Josely Vianna Baptista, Jussara Salazar e Micheliny Verunschk. Pra cada mulher selecionada, mais de 8 homens.

Em Literatura brasileira hoje (org. Manuel da Costa Pinto, Publifolha, 2004), de 30 poetas, só são mencionadas duas: Adélia Prado e Claudia Roquette-Pinto. Catorze homens por mulher. Folha explica mesmo.

Na Antologia comentada da poesia brasileira do século 21 (org. Manuel da Costa Pinto, Publifolha, 2006), de 70 poetas são somente 7 as mulheres: Adélia Prado, Claudia Roquette-Pinto, Dora Ferreira da Silva, Dora Ribeiro, Jussara Salazar, Josely Vianna Baptista e Micheliny Verunschk.

Se fizéssemos sete mesas de debate, cada uma teria nove homens e só uma mulher. Senão poderíamos fazer aquele cordão de isolamento sanitário ótimo: uma mesa sobre poesia feminina, deixando os homens mais à vontade pra falar de poesia universal, hehe.

Também poderíamos fazer como as manchetes de jornal. Uma narração positiva: “Foram escolhidos 70 poetas, dentre estes destacam-se inéditas 7 mulheres. Conheça cada uma”.

Guardei para o final o dado mais avassalador. De todos os livros e artigos mencionados acima, não encontrei uma poeta negra que seja citada. Mas fui pelas fotos no google e quero estar errada. Me corrijam.

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Enfim, creio que está bastante clara a desproporção quando há o recorte. Quando há a seleção. Não faltam bons lançamentos, obras e editoras. Peguei a esmo na minha estante os livros aí. Há outros. Talvez mais justos. Olhando assim, a antologia que organizamos festivamente pra abertura do Hussardos melhora, mas também está meio a desejar, deu quase dois homens para cada mulher, não chegamos à metade (É que os Hussardos chegam hoje, Ed. Patuá, 2014).

Falta ainda um que tivesse maioria de participação feminina. Que fizesse jus ao ano que habitamos. Quem sabe você não se anima e organiza um? Começa. Sei que há movimentações por aí a respeito.

Qual a perda? Bons poemas. São versos que te roubam. Sensibilidades que são descartadas. Análises de mundo despercebidas. Quem perde são todos. Olha, a gente tem muito o que ler. Muito. O mundo é maior.

Que 2016 seja mais bonito. E possa trazer um pouco de justiça. Que sempre será pouca. E nunca em tempo. Fico com a obstinação calma retratada pela Luíza Mendes Fúria (em Inventário da solidão, 1998):

Fazer versos

como quem esculpe conchas

um desafio interminável

ininterrupto.

..

Agradeço ao querido Gegê as correções na “parte matemática” do post. As piadinhas são da Tarsi e dele. Qualquer erro, principalmente uns terríveis de língua portuguesa que cometo todos os dias por aí, são meus mesmo.

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