Comentarei dois artifícios muito simples: o refrão e a anáfora para se escrever poesia hoje
Perguntas interessantes para quem escreve poesia no século 21 são as que envolvem ritmo e sonoridade. Devo usar métrica? Devo usar formas fixas? E se eu não quiser usar nada, fica muito solto?
Todas as respostas dependem muito de teu projeto estético. Assim, o ritmo de cada poema depende da concepção poética de quem escreve. Entendo que, muitas vezes, não é fácil tomarmos estas decisões.
Uma coisa, porém, é certa: o ritmo é o que finca o poema no coração das pessoas. O ritmo é tão essencial para a poesia quanto a musicalidade para as canções. Pense em algum verso que você sabe de cabeça… sinta o ritmo do verso. Percebe?
Separei aqui dois artifícios discutirmos a construção do ritmo em poemas do agora: refrões e anáforas. Acho que não há nada mais simples. Você já os conhece. Quero então mostrar seus usos e potencialidades. Ambos são, inclusive, artifícios muito semelhantes, pois trazem a repetição de estruturas dos versos. Depois quero ver você praticar por aí!
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Dois artifícios interessantes para poemas contemporâneos
Refrão
Não poderia começar com outro recurso! O refrão é uma estrutura fixa que se repete ao longo de uma canção ou poema. Geralmente são um ou dois versos, em uma estrofe separada. Nada impede que seja mais longo ou mais próximo aos demais versos.
Compartilhado com a música e a poesia, o refrão, quando usado, se torna um cerne nos textos. O refrão é… quando todo mundo canta junto! Quem vai no karaokê sabe, aparece aquele refrain.
Um dos refrões mais conhecidos por aí é o “nevermore” (“nunca mais”) do poema “O corvo”, “The Raven” do romântico Edgar Allan Poe (1809 – 1849). Considerado um dos poemas mais conhecidos da era moderna, foi traduzido e insensado pelo senhor Baudelaire, quem que traduziu a obra de Poe ao francês.
Você também pode me perguntar inclusive se é um refrão mesmo, pois o nevermore que crocita o corvo está sempre entranhado nas estrofes. Olha, eu acho que é um refrão. A minha justificativa é ótima: todo mundo canta junto esse nervermore quando o poema é lido em voz alta, hehe.
Separei duas traduções das três mesmas estrofes – o momento quando o corvo aparece na janela para perturbar quem já estava com perturbações suficientes. É legal ler os artigos que acompanham as traduções que foram publicadas na revista Escamandro, deixei os links.
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Texto original [ler na íntegra]
Open here I flung the shutter, when, with many a flirt and flutter,
In there stepped a stately Raven of the saintly days of yore;
Not the least obeisance made he; not a minute stopped or stayed he;
But, with mien of lord or lady, perched above my chamber door—
Perched upon a bust of Pallas just above my chamber door—
Perched, and sat, and nothing more.
Then this ebony bird beguiling my sad fancy into smiling,
By the grave and stern decorum of the countenance it wore,
“Though thy crest be shorn and shaven, thou,” I said, “art sure no craven,
Ghastly grim and ancient Raven wandering from the Nightly shore—
Tell me what thy lordly name is on the Night’s Plutonian shore!”
Quoth the Raven “Nevermore.”
Much I marvelled this ungainly fowl to hear discourse so plainly,
Though its answer little meaning—little relevancy bore;
For we cannot help agreeing that no living human being
Ever yet was blessed with seeing bird above his chamber door—
Bird or beast upon the sculptured bust above his chamber door,
With such name as “Nevermore.”
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Tradução de Bruno Palavro
Não deixe de ler o artigo na Escamandro, que apresenta três traduções e explica o esquema rítmico, as rimas e as soluções para o refrão:
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Tendo aberto já a vidraça, turbulento me esvoaça
E entra ali um nobre corvo de eras santas e ancestrais;
Cumprimentos não prestou, nem um minuto ali ficou:
Com ar de lorde ou lady voou até pousar nos meus umbrais –
Sobre um busto, no de Palas, logo acima dos umbrais –
Lá pousou e nada mais.
A ave de ébano deteve meu pesar num riso leve
Com o decoro grave e austero de seus ares tão formais.
“Sem penacho volumoso, mesmo assim não és medroso,
Corvo ancião e pavoroso vindo lá do escuro cais –
Diz qual é teu nome lá nas trevas do plutôneo cais!”
Disse o corvo: “Nunca mais”.
Admirei que a ave rara discursasse assim tão clara,
Salvo a pouca relevância das palavras, bem banais;
Mas que seja mencionado: não há humano agraciado
Que antes tenha contemplado alguma ave em seus umbrais –
Ave ou besta no esculpido busto sobre seus umbrais –
Com tal nome, Nuncamais.
Tradução de Guilherme Gontijo Flores & Rodrigo Tadeu Gonçalves
Quem transformaram o corvo num urubu, deslocando a ideia metafísica de perda do Poe ao plano terrestre brasileiro, de perdas cujas lamentações são inúteis diante das mazelas do dia-a-dia, do perrengue nacional. Os tradutores então alteram o “nevermore” em “no teu cu”. Não deixe de ler o artigo em que explicam o processo de elaboração e inclusive com bastante detalhe as soluções sonoras.
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Abro a tranca da janela sem deixar de pensar nela,
ali pousa, majestoso belo, arcaico – um urubu;
não fez gesto de respeito, só pousou no parapeito,
com orgulho no seu peito; e eu no meu vestíbulo
vejo o ser empoleirar-se em Palas no vestíbulo,
repousando sem rebu.
Esse bicho tez-noturna logo alegra a dor soturna
com o sério e decoroso ar de um ser impávido.
“Tua crista sem alarde diz que tu não és covarde,
urubu da cinza tarde dessa eterna noite azul,
dize enfim qual é teu nome na plutônia noite azul!”
Urubu diz: “Noteucu”.
Galináceo petulante, se pasmei de o ver falante,
seu discurso irrelevante pareceu ridículo.
Ora, vamos e venhamos, que jamais nós encontramos,
nesta vida que levamos, ave num vestíbulo –
bicho ou besta sobre um busto belo no vestíbulo,
com tal nome: “Noteucu”.
Não deixe de ler em voz alta para entender como os sons em “uuu” funcionam aqui, inclusive com muito humor.
Anáfora
A anáfora é a repetição de um elemento no início da frase ou estrofe. Ou seja, quase um “refrão no início”, hehe.
Pode a repetição de ser um verso todo ou mesmo uma mera partícula. Neste segundo caso, lembro do “é” clássico Camões: “Amor é um fogo que arde sem se ver/ É ferida que dói e não se sente/ É um contentamento descontente/ É dor que desatina sem doer.”
[Tudo bem se você conhecer os versos por conta do Legião Urbana e não pelo cara que deixou a Dinamene se afogar para salvar um livro. Afinal de contas, nunca deu para entender esta história muito bem, pois (a) como o afogado salvou um maço de papel? (b) Dinamene não era uma nereida, assim, como uma pessoa que vive no mar morre afogada? Aposto que Renato Russo saberia explicar estas dúvidas em uma canção de 7 minutos. Ou o velho feminismo].
A anáfora é um recurso muito útil e popular. A repetição refina o ritmo e reapresenta uma mesma ideia várias vezes, como se puxasse um fio comprido para fincar a agulha no pano e dar uma nova laçada.
Um de meus exemplos favoritos de anáfora está neste poema do Roberto Piva (1937 – 2010):
Os anjos de Sodoma
Eu vi os anjos de Sodoma escalando
um monte até o céu
E suas asas destruídas pelo fogo
abanavam o ar da tarde
Eu vi os anjos de Sodoma semeando
prodígios para a criação não
perder seu ritmo de harpas
Eu vi os anjos de Sodoma lambendo
as feridas dos que morreram sem
alarde, dos suplicantes, dos suicidas
e dos jovens mortos Eu vi os anjos de Sodoma crescendo
com o fogo e de suas bocas saltavam
medusas cegas
Eu vi os anjos de Sodoma desgrenhados e
violentos aniquilando os mercadores,
roubando o sono das virgens,
criando palavras turbulentas
Eu vi os anjos de Sodoma inventando a
loucura e o arrependimento de Deus
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Preciso dizer que esse “eu vi”, na minha cabeça alucinada, me lembra muito o refrão “Meninos, eu vi!” do Gonçalves Dias, do poema I-Juca Pirama, lembra? Refrão que fica pra sempre na cabeça. Aqui vai o trecho:
Um velho Timbira, coberto de glória,
Guardou a memória
Do moço guerreiro, do velho Tupi!
E à noite, nas tabas, se alguém duvidava
Do que ele contava,
Dizia prudente: – “Meninos, eu vi!”
A respeito da anáfora do poema do Roberto Piva, achei uma dissertação de mestrado da Carolina Fernochi Sant’Ana, “Uma abordagem semiótica da obra de Roberto Piva” (FFLCH-USP, 2013), em que é analisado este poema.
A autora aponta como esta repetição constituiria um “regime poético do pregador”, que instauraria um tom declamatório e traz o delírio figurativo pelo qual a obra do Piva mora no meu coração. Cito a autora:
“Roberto Piva integra o regime do pregador. Essa nomeação parece feita sob medida para o poeta, e auxilia a compreender toda a sua poesia, pois o que foi dito acima, sobre a capacidade como agitador cultural e de congregar jovens, está relacionada aos recursos discursivos de sua poesia.
Dentre esses recursos está a fixação de uma frase, mas também de palavras ou de traços fonológicos que formam aliterações ou assonâncias. Essa fixação não é apenas temática, mas também entoativa, o que faz com que o poema pareça ter sido feito para ser recitado em frente a uma multidão, o que condiz perfeitamente com a própria figura e história do Piva. É um poeta que prega o desregramento: dos versos, dos sentidos, das imagens e da vida.”
Bonita a análise, não? Leia o poema em voz alta e veja como a anáfora instaura todo esse tom que parece perpassar dias e noites.
Um poema de exemplo
Deixo para você um poema meu para ver outro exemplo de uso dos dois recursos em sobreposição – anáfora que se transforma refrão ao final, “noite noturna/ o vermelho é a única cor” e anáfora que estrutura o poema do “vou te carnar”.
campos de lua
noite noturna
o vermelho é a única cor
o resto não tem gosto
e pode começar a correr
pq eu vou te carnar
vou te carnar
e te botar meu espartilho
de costelas emprestadas
avalanchar os demônios
que moram dentro das minhas
asas cortadas
vou te carnar
e te cheirar a sangue
pele pelo cigarro
te lanhar as tatuagens
corpo a corpo poro a poro
ponto a ponto
vou te carnar
até vc existir
diante de mim
noite noturna
o vermelho é a única cor