O que podemos aprender com “Daddy” de Sylvia Plath

Na última sexta-feira, abertura da oficina Frio & Fúria aqui em casa, trouxe o Daddy” da Sylvia Plath para conversarmos sobre o uso de imagens na poesia.

Apresentei o poema na tradução da Marina Della Valle, quem publicou o texto em um artigo bem interessante no qual relata suas escolhas e limites desse fazer tão complexo, ainda mais em poemas que na rima e no ritmo nada facilitam. O original foi escrito em 1962 e publicado postumamente na obra “Ariel” em 1965.

Queria puxar uma pontinha que a Marina deixou solta no novelo para falar umas duas palavrinhas a respeito do poema, um de meus prediletos. Primeiro dizer de como a Plath se utiliza de várias camadas de vozes para trazer maior complexidade e profundidade ao poema. Depois como equilibra a questão do fascínio pela figura paterna e o asco que provoca.

Você pode ouvir a própria Sylvia lendo aqui

Artigo da Marina Della Valle: Sylvia Plath: quatro “poemas-porrada”, com a tradução

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1. Explore a própria língua como alguém do estrangeiro

Marina nos conta que “de acordo com artigos e textos biográficos, Sylvia Plath tinha o hábito de caçar palavras no dicionário, marcando o livro quando encontrava uma que a agradasse: ela explorava a própria língua como uma estrangeira, contribuindo assim para a formação de um sentimento de deslocamento que tantas vezes enuncia com maestria.”

Creio que pensar a própria língua materna como um idioma que não nos pertence faz com que a gente consiga se apropriar, uma vez mais, da linguagem quando escrevemos. Pareço louca, mas veja como faz sentido:

Escolha em uma palavra que você adora em português. Reflita um momentinho a respeito de qual o motivo que te leva a tal paixão. Role a palavra na tua língua, na tua garganta. Onde é gostoso de pronunciar. Onde é travoso. Vasculhe a palavra no dicionário. Leia em voz alta cada uma das entradas. Discorde do dicionário. Se emocione com o dicionário. Se perca por sinônimos, antônimos. Escreva a palavra num papel. Encare a palavra de volta. Você verá que a palavra é uma nova palavra e a mesma. Muito mais tua. Muito mais estranha do que no início.

Esse balanço é muito importante na escrita. Não tomar a própria língua como inerte, habitual, corriqueira. Manter um sentido de deslumbramento e descoberta é essencial. A língua precisar ser uma aventura.

No poema “Daddy” (“Papai”), há um aprofundamento desta noção. Há colisões entre vozes no texto que fazem um verso começar de um jeito e terminar de outro. Você escuta uma criança birrenta, chorando, rimando tudo na “cascata de rimas em som de “u”. Você escuta uma voz adulta, seca e objetiva, que expõe a necessidade de matar o próprio pai – inclusive com explicações bastante convincentes sobre a dificuldade de se fazer isso:

Eu tive de matar você, papai.
Você morreu antes que eu pudesse –
Peso de mármore, saco repleto de Deus,
Estátua medonha com um dedão gris
Do tamanho de uma foca de Frisco

(Frisco é o apelido da cidade de São Francisco nos Estados Unidos)

Para ser mais literal em meu exemplo, o poema efetivamente traz trechos em outra língua. Há trechos em alemão, frases simples e termos de guerra, em que você escuta resquícios da fala do pai, nazista alemão, na “arapuca de arame farpado/ Ich, ich, ich, ich”, sua linguagem obscena falando de Luftwaffe, com o bigode asseado e de botas.

Assim, em “Daddy”, você tem praticamente estes três tons de voz que se alternam no tratamento da linguagem: (a) uma criança birrenta e acusadora, (b) uma mulher adulta, seca e resoluta (c) intromissões desse pai ausente – por intermédio dos termos na língua estrangeira ouvimos a voz da figura horrenda ao redor da qual o poema gira.

Essas dicções ainda se transformam uma vez mais quando a principal voz do poema se coloca como Judia: “Passei a falar como uma Judia./ Acho que bem posso ser uma Judia“. Começa a raciocinar que há uma ancestral cigana, um baralho de tarô, “Acho que bem posso ser Judia“. Dessa forma, as dicções se cruzam e se misturam, aumentando as tensões no poema.

Trabalhar com as várias vozes no texto, inclusive bastante antagônicas, permite que o poema fique profundo, denso, pois carrega mais contradições.

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2. Desconstruir o fascínio e sublinhar o asco

daddyOutra lição que podemos retirar do poema é a maneira com que a poeta tempera algo muito difícil: apontar o que é asco e o que é fascínio. A grande questão do poema é que, embora o pai seja um nazista horrendo, em nenhum momento esta voz que narra consegue se livrar de sua atração. Há um passo falso, uma oscilação entre o fascínio e o asco que a figura paterna causa.

Da forma como o poema se apresenta, parece existir um imã, cuidadosamente forjado para esta atração: “a man in black with a Meinkampf look”. Aqui me ocorre esta construção que passa indústria cultural cinematográfica. Sim, o homem forte, branco, de olhos claros, conhece? Se quiser, pode acrescentar um sobretudo, botas. A construção de uma beleza que nem as atrapalhadas cerimônias de Oscar conseguem hoje botar à prova.

O corpo bélico. Corpo de homem ideal imantado na Alemanha hitlerista [Olympia, o triunfo do corpo], que vai esculpir esse corpo masculino e ideal das catacumbas do que se considerava a beleza grega e que irá aportar como uma agulha de bússola na indústria norte-americana no pós-guerra.

Nem menciono transações e lucros comprovados entre estúdios em Hollywood em seus anos dourados e o Reich [“Hollywood de Hitler”, entre propaganda e diversão]. Menciono mesmo essa herança: a ode ao corpo musculoso, a construção da beleza baseada no corpo bélico. Sem esquecermos da participação das mulheres filiadas ao nazismo, como Leni Riefentahl e Thea von Harbou neste processo de criação da masculinidade do corpo bélico no século XX.

No poema, a atração irresistível a esta figura masculina bélica, bruta e autoritária (que na revista de domingo nas bancas poderia bem ser descrita como “bonito, seguro e másculo”), é resumida no verso-chave do poema:

Every woman adores a Fascist”. *

Tudo isto posto, como evitar a atração? Bom, a Plath não é nada boba, assim o texto constrói, com suas várias vozes, um caminho para evitar este fascínio: a chave foi desdobrar a atração até cavoucar achar a indústria da guerra.

Em um dos versos, quando se apresenta a figura paterna, o texto traz a junção do “panzer-man”, homem-tanque, tanque de guerra e o cerca armamentos e medo. No original:

I have always been scared of you,
With your Luftwaffe, your gobbledygoo.
And your neat mustache
And your Aryan eye, bright blue.
Panzer-man, panzer-man, O You –“

Citei o original para você ver como vai de “Luftwaffe” (força aérea da Alemanha nazista) até “gobbledygoo” (corruptela infantil de “gobbledygook“, uso excessivo de jargão), que são palavras que bem poderiam ter sido pronunciadas por este pai para uma criança pequena. Na tradução da Marina:

Você sempre me meteu medo,
Com sua Luftwaffe, seu papo furado.
E o seu bigode asseado
O olho ariano, bem azulado.
Homem-panzer, homem-panzer, oh Você –

Me parece que essa segunda manobra para retirar a fascinação e inserir o temor e o asco que a figura paterna causa é bastante inteligente. Taí algo que poderíamos aprender com a Sylvia Plath: desviar do que nos atrai e cavoucar uma trincheira até achar efetivamente uma forma de representar a mesma figura. Corajoso, não?

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Poderia dizer muito mais sobre o poema. Sobre a secura do tom, que evita descrições sentimentais e nos traz imagens poderosas. Mas por hoje está ótimo o tamanho do post.

No mais, ando rascunhando muita coisa. Uma pequena série de poemas para a revista Deriva, cuja futura edição tratará do tema memória. Quero escolher um tema espinhoso, dolorido. E pedir à Dyva para que o poema seja à altura da tentativa. Por isso, ando lendo e anotando. Há sempre tanto o que aprender, não?

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* Every woman adores a Fascist: Anoto que é o único verso em que a voz menciona que talvez seja uma mulher. No restante do poema, as escolhas são de gênero neutro, ou seja, poderia bem ser um homem narrando o “Daddy” (me corrijam se perdi algo). Esse fato daria um bom quebra-cabeça para traduções ao português. Embora eu já esteja afeiçoada a esta da Marina, hehe.

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LEIA MAIS:

Sylvia Plath: quatro “poemas-porrada”, por Marina Della Valle. Cadernos de Literatura em Tradução, n. 7, p. 165-199, 2006. No artigo, você encontrará a tradução de “Daddy” que utilizei aqui e também dos poemas: “Elm”, “Lady Lazarus” e “Lesbos” e outros detalhes sobre a obra da Plath no Brasil.

Análise do poema “Daddy” de Sylvia Plath, por Rafaela Ferreira e Vanessa Monteiro

O suicídio de Sylvia Plath e a sombra de seu pai, por Mark Anspach

Sylvia Plath: um poema, três traduções, por Mário Loureiro na SP Review. O tradutor apresenta e comenta três traduções possíveis ao poema “Words” de Sylvia Plath: a primeira feita pela Ana Cristina Cesar, a segunda por Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça e a terceira de cunho próprio.
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Retirado de http://www.letuswrite.net/daddy-by-sylvia-plath.

 

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