Zines, papel para um idioma pessoal

Relato sobre a oficina de fanzine as línguas e os idiomas das mulheres durante o festival [eu sou poeta]

 

 

Acontecido em março de 2016, domingo de manhã na Biblioteca Alceu Amoroso Lima

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Mesa. Círculo. Ar. Rever, será que trouxe tudo que tinham me pedido? Minha vida de produção de eventos ensinou um algo: momentos antes de começar um evento, você somente cuida de questões objetivas e simples – revisar o espaço físico, pensar no conforto das pessoas, no ânimo. A divulgação está feita. Quem estiver interessada na oficina irá chegar. Alea jacta est.

Pensei nessa regra pela enésima vez no domingo. Manhã e oficina de zine. Será que vem gente? Respirar e domar a ansiedade. Arrumar cadeiras. Mesa. Abraçar a amiga querida que chega com sorrisão. Avistar a Julia. Papear. A Pilar que veio de Goiânia. A Karine com o vestido roxo que gosto tanto. A Rosa que trabalha na Alceu. Começar uma roda de apresentação. Claro que veio gente. A oficina foi incrível. Conto um pouquinho.

 

Trabalhando o corpo, a artista e a escritora

Uma página dos “Diários de Bordo” da Julia.

Quem ministrou a oficina foi a Julia Francisca. A Julia sabe muito. Narrou algumas de suas pesquisas artísticas. É artista plástica, escritora. Falou a respeito de uma pesquisa que fez sobre diários – diários como frestas do cotidiano.

O diário talvez seja um dialogar quando não se possui interlocutor. Não soa familiar? Me lembra o “parece que estou falando com as paredes” de minhas avós, minhas tias. Ainda esse papo inserido em festival que pretende discutir a invisibilidade do que as mulheres escrevem. Marca com um gosto agridoce a manhã.

Júlia nos contou que, durante a faculdade, se incomodava muito com as aulas de modelo vivo. São questões duras também. Quem eram aquelas mulheres? Corpos a mercê do olhar de estudantes? Objetificadas? Um desenho de observação, mas de uma realidade forjada, seria um anti-exercício de observação? Da pedra que incomoda floresce a ideia: Júlia começa a traçar um plano – desenhar mulheres reais, com seus relatos, com suas marcas de afetos.

O zine [nectarina] é um projeto da Júlia que nasceu destas ideias. O grande tema do corpo e da possibilidade de se habitar. Uma leitura para mulheres. Como se masturbar. Como ter prazer nesta casa que se confunde conosco mesmo.

Júlia contou também das dificuldades do convite para retratar mulheres. Nem toda mulher se sente à vontade para ficar pelada e ser observada, desenhada. Ainda comentou a questão da indústria pornô, que acaba por dirigir um modo de olhar sobre o corpo, ditando poses, trejeitos e enquadramentos. Júlia compartilha suas dúvidas. Será que o zine conseguia ser finalmente um bom projeto ou terminava por reproduzir esse olhar que objetifica também?

Bom, eu acho o zine lindo.

 

Afinal, o que é um zine?

Uma discussão que tivemos foi “o conceito de zine”. Zine, abreviação de fanzine, é uma publicação mais ou menos com as seguintes características:

[a] Feito por conta própria: todo o conteúdo e disposição de textos e imagens é feito por quem o assina. Pelo coletivo, por você, pela banda. Desde a redação, ilustração, diagramação, tudo. O que muitas vezes se resume a fazer um material criativo e xerocar.

[b] Conteúdo: geralmente são provocativos, criativos, militantes. Lembramos do punkrock, dos zines anarquistas, zines que hoje debatem gênero, etc.

[c] Independente: não é vinculado a uma instituição, editora. Dessa forma, o SESC ou uma editora comercial não pode fazer um fanzine. Mas um coletivo feminista pode. Você pode. Uma banda de meninas de 14 anos pode. Você aí tb pode.

[d] Circulação: circula em atividades de movimentos sociais, militantes, feiras de publicação independes, festivais de música. Você não vai encontrar zines na Livraria Cultura.

Se quiser saber mais, leia o post Zines! Contemporâneos e geniais

No caso do zine [nectarina], traz a discussão política que é retirar o corpo da área de consumo sexual pornográfico. Mostra uma pesquisa visual sobre a representação do corpo da mulher feita pela própria Júlia. Autora que cuidou das ilustrações, organização e edição do texto, compra do papel bonito e da impressão que faz perto de casa. Ela mesma vende. Ou troca por outras publicações, naquele escambo afetivo entre autoras. Circula em feiras de publicação e também na militância feminista.

Levantei a pergunta sobre qual seria a diferença de um zine e uma plaquete. Plaquete são publicações feitas por quem escreve para testar um texto ou simplesmente difundir um escrito que não caberia em um livro – pelo custo, relevância, urgência. Tenho uma grande coleção de plaquetes. Por mim, chamaria tranquilamente o [nectarina] de plaquete.

Chegamos a algumas conclusões. As plaquetes são mais ligadas a ideia de livro. Nem sempre a uma militância ou a uma ideia. Muitas vezes trazem um acabamento mais refinado – com grampos, papeis especiais, diagramação respeitando a mancha tradicional do papel, essas coisas. Em algumas livrarias alternativas, é possível encontrar uma estante para vender plaquetes, lembro de ter visto isso na La Libre e Mi Casa, livrarias de Buenos Aires, e na St. Mark’s Bookshop em Nova York. Não lembro de ter visto algo assim no Brasil, mas deve ter (me contem!).

Em feiras de publicações, você pode encontrar zines e plaquetes. Em certo lugar, as publicações são praticamente a mesma coisa. Cabe a quem produz denominar “zine” ou “plaquete”. Júlia prefere dizer “zine” ao [nectarina] por uma questão política, para marcar a importância dos fanzines.

Leia o post Plaquetes! ideias para fazer publicações independentes

 

Zine, resistência e literatura lésbica

Assim, difícil pensar em zine e não pensar nos conteúdos que trazem. A Rosa lembrou dos anos de 1980, na PUC, da importância que tinham. Traziam o que não saia nos jornais (aliás, o que sai nos jornais?), os textões que hoje cabem no facebook (cabem?). Fanzines circulando de uma mão para a outra mão. Aproxima. Provoca o diálogo do “bom dia, já leu essa?”. A Pilar lembrou da geração mimeógrafo e do exemplo do Nicolas Behr. Disse que em Goiânia ainda hoje se produz muito zine, ficam ali em varais nos eventos literários.

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A Júlia comentou ainda a respeito do [nectarina] e de sua militância lésbica. Lesbianismo como resistência política. A publicação incorpora uma pesquisa sobre a literatura do amor entre mulheres. A importância de reescrever uma história continuamente apagada, a história das mulheres lésbicas. Sem esquecer que poesia lírica é visceralmente ligada a Safo de Lesbos, não é?

A Júlia ainda falou do coletivo feminista negro “Louva Deusas”, que organizaram a Primeira Coletânea Erótica Feminista Negra do Brasil. Há muito para ser lido.

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Fazer um zine é praticar seu idioma pessoal

Ao final da oficina, elaboramos a muitas mãos o nosso zine! Ficou com a Pilar, para ela levar de recordação de nosso encontro. Mulheres precisam estar juntas para fazerem zines.

Para começar a fazer o fanzine coletivo  voltamos para a sensação dos nossos corpos, respiração, sensação, pele, ossos. A Julia falou que o fanzine pode ser um espaço para escrever (e conhecer)  nosso idioma pessoal – conceito do psicanalista Gilberto Safra (livro Hermenêutica na situação clínica o desvelar da singularidade pelo idioma pessoal, Ed. Sobornost) a que diz respeito a forma como cada pessoa precisa encontrar uma língua própria para dar conta de suas experiências diante do inominável…

Cada uma das participantes então escreveu um pequeno texto a partir da proposta de que o texto fosse uma excreção, um cuspe, uma extensão do corpo e da experiência de estar ali. Desenhamos, colamos, passamos os textos a limpo e no fim tivemos um zine lindo, com a mão de todas que estavam presentes.

 

Sobre

Relato feito sobre uma das atividades do festival [eu sou poeta]: Oficina de fanzine: as línguas e os idiomas das mulheres, ocorrida em 19/3/2016 na Biblioteca Alceu Amoroso Lima em São Paulo (SP). O festival é pensado para combater a invisibilidade da produção poética de mulheres e também um momento de análise e balanço sobre esta produção. Como poetas possuem um tempo próprio, consegui somente publicar hoje.

Dedico às maravilhosas companheiras de tesoura, afeto e cola Francesca Cricelli, Karine Kally Pereira e Pilar Bu. Agradeço à Julia, com quem aprendi tanto.

 

Outras referências

Zine [nectarina]

Página no facebook do zine [nectarina]

Versão on-line [nectarina] #1

Versão on-line [nectarina] #2

 

 

http://wordpress.anarusche.com/plaquetes-ideias-para-fazer-publicacoes-independentes/

 

http://wordpress.anarusche.com/zines-e-fanzines/

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